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  • Foto do escritorLeandro Barreiros

A Era das Referências

Atualizado: 20 de mai. de 2020

Este post é um prelúdio da resenha de “O médico e o Monstro”, livro escrito por Robert Stevenson, que integrará a clássica seção “narrativas do Abismo” do madruganalapa. Nessa seção, as melhores histórias de terror são objetivamente escolhidas. Isso mesmo. São escolhidas de maneira objetiva. Se você discorda do que é dito nessa seção, não tem problema. Mas você está errado.


De todo modo, hoje eu não falo sobre o livro, mas sobre uma reflexão que o livro me causou. Na verdade, é uma reflexão sobre uma impressão prévia à leitura.


Devo começar dizendo que eu, grande admirador e entusiasta de histórias de terror, apenas li o clássico “o Médico e o Monstro” muito recentemente, já depois de meus 30 anos. Isso se deu pela estranha sensação de que eu já sabia tudo sobre a narrativa e os personagens, sem nunca ter aberto o livro.


Para mim, o interessante no livro acabou não sendo a própria narrativa, mas sim a descoberta gradual a cada virar de página de que eu não sabia muita coisa sobre a história.


Duvido que eu esteja sozinho nessa.


Se eu tivesse que apostar eu diria que muitos compartilham dessa sensação.

Pense.


Se você nunca leu esse livro, não sente uma estranha sensação de familiaridade com a história, o enredo e o conteúdo que você nunca tocou?


Jamais li Moby Dick, mas rasteja essa sensação de conhecimento dentro dos meus miolos.


Há Ahab, um desejo de vingança, e uma gigantesca baleia branca. E, embora nunca tenha folheado as mais de 500 páginas do romance americano tenho esse estranho sentimento de que conheço cada palavra.


E quem não sente o mesmo com “Frankenstein” ? Com ou sem livro, sabemos que há um cientista louco, um esforço pela ressurreição, um monstro incompreendido e uma turba furiosa. Pro inferno, sabemos mesmo que Frankenstein é o nome do cientista, e não da criatura. Sem jamais folhear uma página.


Sabemos e sentimos que sabemos porque vivemos a Era das Referências.

Conhecemos tudo sem ao menos nos esforçarmos para alcançar a leitura original da coisa porque ouvimos tanto sobre ela que, de alguma forma, ela adentrou nossa psique e nos convenceu de que não só a conhecemos, mas todos os que também não a tocaram de forma direta igualmente a conhecem.


Conhecemos porque assistimos Pernalonga e Patolino, as Aventuras de Scooby Doo e dezenas de filmes e histórias em quadrinho, como a do intrépido Incrível Hulk. Interpretações da obra de Stevenson são marteladas em nossa cabeça desde sempre.




Acredito que essa sensação/certeza de conhecer tudo explique certos fenômenos sociais que já vi aqui e ali.


O maior exemplo que lembro são os diferentes professores universitários que fingem terem lido obras científicas e filosóficas que verdadeiramente fogem do escopo de seu interesse acadêmico. Em algum momento, contudo, um conhecido de um conhecido de um conhecido falou que “A História dos Conceitos” de Reinhart Koselleck é o último biscoito do pacote. Daí todos têm que conhecê-la. E conhecem. Pelos amigos que falam sobre, pelos resumos de livros dispostos na internet, pelas centenas de artigos, construídos não com base na obra original, mas em artigos feitos de artigos, feitos de um artigo de alguém que realmente leu o livro.


É por isso que tantos criticam a pedagogia do Paulo Freire, sem nunca ter aberto uma única página. Ou porque tantos o defendem com unhas e dentes, sem ter folheado qualquer coisa. Porque tantos falam das teorias marxistas sem terem se arriscado em “O capital”, quando muito tendo investido em “O Manifesto Comunista”.


Estamos, no fim das contas, acostumados com a vida em meio às milhares de referências e acreditamos que conhecemos as coisas das quais falamos com uma ingenuidade grosseira. Acreditamos que os outros também a conhecem, o que, de algum modo, aumenta nosso senso de responsabilidade sobre a obrigação de entender o conteúdo.


Somos os mestres do alguém disse em algum lugar do youtube, os senhores da interiorização pela mídia televisiva e os gênios que sabem a interpretação da interpretação de quem leu a coisa sobre a qual falamos.


E o Médico e o Monstro?


É bacana. Bem diferente do que eu esperava.


Sobre ele falo na próxima semana.

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