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  • Foto do escritorLeandro Barreiros

Companheira de guerra



Shiar encontrou Kamaru deitado no celeiro. O cheiro de enxofre e podridão exalava de sua asa esquerda, afastando até mesmo as moscas. Tinha que ficar sozinho, pois os outros dragões já não suportavam sua presença. Não havia espaço para um dragão que não podia voar, nem entre os antigos companheiros alados.


Kamaru ergueu a cabeça em direção a Shiar. Precisou de um tempo para reconhecer a jovem guerreiro, pois mesmo seu olfato não era capaz de atravessar a pestilência emanada de sua asa. Ela estava vestida com os trajes que sempre usava em batalha, quando montava em seu corpo e vencia os inimigos, fosse no chão ou no ar. A malha de aço, as placas brilhantes e a espada embainhada na altura da cintura lembravam tempos que não voltariam mais, isso o dragão sabia.


A recordação da última batalha atingiu a memória do dragão com a mesma violência com que a lança mutilara o seu corpo e infectara sua carne. Sentiu-se envergonhado, triste e sozinho. Por isso, virou a cabeça na direção oposta, deitando-a sobre a palha.


Shiar arrepiou-se. Desde a infância ouvira sobre a sensibilidade dos dragões, mas apenas quando virou uma mulher vivenciou-a. Mesmo antes de se tornarem líderes do esquadrão vermelho, presenciou a dedicação de Kamaru em batalha. A ferocidade com que destruía inimigos no céu e na terra; o cuidado com que mantinha Shiar protegida das investidas. Cada vez que a batalha terminava, Shiar podia ver os olhos de Kamaru faiscando, sentia as escamas trêmulas e ria de seu sorriso bobo de dragão quando passava a mão em sua boca. Após a batalha, Kamaru era apenas alegria. Você viu como fui bem? Você viu?, queria dizer o dragão todas as vezes. E todas as vezes Shiar sorria de volta, respondendo com o coração eu vi. Sim garoto, eu vi. Por uma década compartilharam a alegria como irmãos.


Por isso, agora, estava tão desolada.  


–Você é um ótimo companheiro –disse, represando as lágrimas nos olhos.


As orelhas de Kamaru levantaram, reconhecendo a voz agradável de sua amiga. Sua cabeça, contudo, manteve-se encarando a escuridão do fundo do celeiro.

O mau cheiro impregnava o ar, invadindo o nariz e a boca de Shiar, quando a abria. Mas isso já não parecia ter importância.


–Os bardos me disseram que farão canções sobre nós. E os druidas me contaram que todo dragão derrotado pelo aço renasce maior e mais belo em cem anos.


Aproximou-se. Agora as lágrimas deslizavam por seu rosto, tal como fazia a espada por sua bainha. O som do metal fez com que as orelhas se mexessem de novo, mas a cabeça do dragão continuou parada, imobilizada por uma tristeza invisível.


Shiar pensou em muitas palavras, mas nenhuma saiu de sua boca. Não havia nada apropriado para se dizer à Kamaru. O companheiro era melhor do que todas as palavras que existiam, ou que viriam a existir.


Por isso, apenas ergueu a espada e cortou com ela o ar, o pescoço do dragão e a palha sob ele.


Nada além de um grunhido sufocado escapou pela boca do animal.


Shiar sentiu que precisava chorar durante o restante da noite, então chorou. Chorou no escuro, cercada pelo cheiro da velha morte e da nova morte. Chorou iluminada, quando as primeiras frestas de luz atravessaram o telhado mal acabado. Primeiro gritando, depois em silêncio e então gritando de novo.


Quando o Sol alcançou o topo do céu, limpou a espada, as lágrimas e foi destacado para um novo batalhão. Montaria um cavalo na frente de batalha, mas foi a solidão quem se tornou sua verdadeira companheira, sempre latente, nas tardes frias e solitárias e nos sorrisos mortos dos outros solitários, do lado de cá e do lado de lá, que também lutavam a boa luta, porque tinham que fazê-lo. Vencida ou perdida, a guerra estaria sempre longe do fim.


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