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  • Foto do escritorLeandro Barreiros

Crônicas do Servo que Habita o Nó e daqueles que o Desvencilham


Sorrindo, olhou o garoto a admirá-lo. Era negro, de cabelos crespos e pernas esmirradas. O lugar era como qualquer outro. Às vezes as construções eram monumentais, noutras épocas, apenas pequenas choupanas. Para Ele, todas iguais. Todas frágeis brinquedos para os seres que outrora caminharam no mundo.

Sua corda estava no chão, o nó desfeito. O garoto continuava com os olhos castanhos arregalados e o queixo caído como um idiota. Mas não era. Idiotas não resolvem o nó, pensou.


Não era a primeira criança que desvendara o enigma. Como todas as outras, certamente tinha uma inteligência aguçada. Crianças eram seus segundos mestres preferidos. Perdiam, apenas, para os idosos.


“Garoto, belo garoto, você sabe o que sou? A menos que todo sonho tenha desaparecido deste mundo, histórias ainda devem ser cantadas sobre a minha espécie”.


O menino continuou imóvel, admirando a belíssima figura a sua frente. Sua pele era marrom e o corpo musculoso. A voz era diferente de tudo o que ouvira. Desde pequeno era obcecado por línguas. Sozinho, desvendara o inglês que ouvia no rádio e compreendera o francês de um velho livro da biblioteca escolar. Mesmo o nó que havia desfeito não passava da linguagem matemática oculta por voltas elegantes. Oculta. Percebeu rapidamente que havia algo escondido no português que Ele falava. Uma língua escondida dentro de uma língua. Uma voz secreta. Voz de fogo. Ele nasceu no fogo, soube sem dúvida alguma, como sempre soube que os peixes nasciam na água.


“Não seja tímido. Se os homens esqueceram o significado da esperança, eu te ensinarei.”


Os olhos da criatura faiscaram e o coração do menino fez o mesmo.

“Sou seu servo por quatro vezes” disse, e era verdade. Como os desejos, havia também quatro regras que Sua espécie precisava seguir e informar a quantidade de serviços era a primeira.


“Será possível que não tem o dom da fala? Que tal corrigirmos isso com meu primeiro serviço?”


E então, diante da trágica possibilidade de ter um desejo perdido, a inércia cessou.


“A… achava que eram três desejos”


O gênio gargalhou.


“Este equívoco não é de hoje, criança. Sempre desconfiei que sua gente era melhor contando histórias do que contando números. São quatro desejos e enquanto você solicitá-los, eu os atenderei.”


“Nossa, é tanta coisa, eu nem sei...”


“Se apresse, criança! Não pense demais. Vocês pensam demais neste mundo. Seu verdadeiro desejo está no coração, não na cabeça”, aconselhou.


“Se eu pedir para ser rico?”, perguntou afoito.


O gênio sorriu.


“Transformei o homem mais pobre de Ur no homem mais rico de toda Mesopotâmia. Basta desejar, criança.”


O menino começou a falar, mas parou. Ao seu redor, os amigos brincavam de futebol, uma idosa caminhava para frente tanto quanto suas pernas aguentavam e Jorge alto, que na verdade era baixo, mexia nas plantações de cebola. Jorge baixo, que na verdade era alto, não estava em lugar nenhum para ser visto.


“Ninguém está te enxergando?”


“Só quem resolveu o nó pode me ver, criança. Vamos, garoto. Cada segundo que desperdiça é um infinito distante de seus sonhos. Riqueza, então?”


O guri olhou para seu próprio barraco.


“Minha mãe está doente”, disse. “Você pode ajudá-la?”


“Enquanto estiverem no reino dos vivos, posso curar qualquer um. Quando passam para o outro lado, está fora de minha competência”, disse o gênio e era verdade, porque era uma das quatro regras.


“Ela ainda está viva!”, respondeu contente. “Está, sim senhor. Pode curá-la?”


“É este seu desejo?”


“Sim!”


O gênio estalou os dedos. Se entediou quando o menino correu para casa e o abandonou ali. Mas foi por pouco tempo.


“Ela está melhor, senhor, está sim!”


O gênio riu um trovão.


“Você deseja e eu sirvo, jovem.”


As crianças se acostumam com tudo tão rápido. Se entregam tão verdadeira e corajosamente. São o contrário dos idosos, sempre cuidadosos. Por isso amava servir ambos. Era um senhor de extremos.


“Seu próximo desejo? Quer sua riqueza?”


O garoto pensou por um instante.


“Não. Quero ajudar os outros”, disse. “Quero ser um super-herói”.


“Um super-herói?”, perguntou confuso.


O garoto balançou a cabeça.


“Quero ser como o super-homem!”, disse decidido.


Os olhos Dele faiscaram, vasculhando o infinito. Então, sorriu o maior e mais perverso sorriso de todos.


“Diga seu desejo novamente, pequeno senhor.”


“Quero ser como o super-homem!”, repetiu. E, rindo uma tempestade, o gênio obedeceu.


Foi uma das crianças que apontou para o menino quando ele começou a levitar. Jorge alto soltou o saco de cebolas da mão e um palavrão da boca. A senhora acelerou o passo.


Todos ouviram os ossos estalando quando as juntas de seu corpo se torceram.

Joelhos, cotovelos, pulsos, tornozelos, em um segundo estavam ao contrário. A espinha produziu um som grotesco quando as costas se quebraram e sua nuca tocou os pés. Possuído pela dor, o garoto gritou. Mas era apenas a primeira dobra.


E muitas estavam por vir.


Quase todos correram para suas casas. As crianças rezaram. Pediram para Deus que, fosse o que tivesse pegado o menino, não os pegasse também. Jorge alto fez o mesmo. E talvez tenha funcionado, porque o gênio nunca cruzou seus caminhos.


*


Não havia muita luz no quarto, mas isso não atrapalhava seus olhos. No chão, seu nó desfeito. Nas paredes, instrumentos de corda e sopro. Um músico, pensou.

A cabeça da mulher era careca, exceto aqui e ali, onde tufos brancos escapavam. O nariz carcomido exigia oxigênio com um barulho desagradável e cada vez que respirava, seu tórax estalava. Nunca vira um humano tão velho. Por isso ficou feliz.


“Anciã, boa anciã! Você deve saber o que sou, pois quem vive muito tempo acumula todo tipo de sabedoria”.


Muda, ela o encarou. Então sorriu.


“Faz muito tempo que não escuto nada. Como isto é possível?”


Ele riu.


“As palavras de minha espécie não tocam os ouvidos, mas os corações. Você sabe o que sou, anciã?”


Ela balançou a cabeça.


“Sim. Eu sei o que você é”


“Então não percamos tempo. Irei te servir quatro desejos.”


Mas a idosa divagava em seus próprios pensamentos.


“Anciã, boa anciã. Não há o que temer. Me diga o que deseja e eu lhe entregarei sem demora.”


“Para que a pressa?”, ela perguntou.


“Para satisfazê-la. Servi muitas pessoas e aprendi que as mais felizes são as que desejam do coração, sem deixar que a mente envenene sua verdadeira vontade. Quero apenas sua alegria. Por exemplo, se sente falta de sua audição, posso restaurá-la. Melhor, posso devolver-lhe a juventude, para sempre”, tentou-a.


Mas ela não desejou.


“Quem criou vocês?”, perguntou.


Ele riu.


“Posso responder qualquer pergunta, mas o preço é um desejo. Gostaria de saber o nome de quem criou a mim e toda minha espécie?”


Silêncio.


“Anciã, boa an...”


“Por que me chama assim?”


“O que?”


“Se é meu servo, deve me chamar de mestra.”


O sorriso desapareceu.


“É esse seu desejo?”


Desta vez ela foi rápida.


“Não. É uma correção. Sua espécie não é antiga como o tempo? Quer dizer que sempre foram burros assim? Se é meu servo, devo ser sua mestra.”


Os músculos se contraíram por um segundo. Então ele se forçou a sorrir.


“É verdade, mestra. Peço desculpas. Gostaria que agora te contasse o nome de meu criador?”


“Não.”


“Não?”


Ela coçou o nariz onde a carne estava exposta.


“Se ouvisse o nome minha cabeça explodiria, certo? Ou talvez ficasse maluca. Imagino que seria um nome tão perfeito que minha alma não suportaria a beleza, não é?”


Agora ele não tentava disfarçar o olhar de desprezo.


“Se quiser que eu responda essa...”


Ela levantou a mão.


“Sim, um desejo. Eu sei. Como sei que, caso aceitasse a juventude eterna, você provavelmente me transformaria em um eterno bebê.”


“Talvez sim, talvez não”, respondeu. “Não sou responsável por desejos mal formulados. Se não quer gastar seu desejo com uma pergunta, pode escolher outra coi...”


Ela riu.


“Você me lembra ele. É. Não são muito diferentes. Haverá uma pergunta, sim. Mas não agora”.


Ele vacilou.


Não são muito diferentes.


“Quem é você?”


Ela riu novamente. Ossos estalando.


“Eu posso responder”, disse a velha, “mas terá que me dar um desejo”


A pele marrom borbulhou. Tornou-se rosada e, então, pura vermelhidão. Os músculos ficaram moles como gelatina e ele se transformou em uma perfeita massa esférica.

“Concederei um desejo extra”, disse finalmente.


“Deve ser horrível ter todo o conhecimento dentro de si e não poder tocá-lo. Mudei de ideia. Não me interessam mais serviços.”


Novas borbulhas. Vapores lentamente ganhavam o ar.


“Você não sabe com que forças está lidando, velha anciã. Faça seu desejo e descobrirá rápido”, disse sombrio.


“Não sou velha. E se já terminou com as ameaças, direi meu desejo.”


A esfera brilhou.


“Quero um livro com a localização de outros três da sua espécie, aqueles que eu consiga encontrar com o menor esforço possível. O livro deve explicitar todos os perigos que encontrá-los terá para mim e uma maneira simples de evitá-los, além de instruções para resolver seus enigmas. O tomo deve ser simples de manipular e entender, contendo, no máximo, trinta páginas. Materialize-o naquela bancada e não sobre a minha cabeça. Além disso, ninguém mais deve ter conhecimento dele.”


Pela primeira vez em sua existência, Ele conjecturou negar um pedido. Bastou isso. Um tênue brilho azul piscou em seu interior e a dor de um milhão de sóis se apagando consumiu seu corpo, enquanto um pequeno pedaço de sua matéria caia no chão.

Sua raça devia servir, porque era essa a terceira regra.


Assim, o livro surgiu.


“Antes disso acabar, você vai se arrepender de ter cruzado meu caminho”, prometeu o gênio.


A mulher foi até a bancada. Inspecionou o livro, mas foi com outro almanaque que retornou.


A revista era repulsivamente macia e colorida. A história de um garoto que se tornou herói. Era quase inspiradora, mas a cada página, independente do diálogo heroico, do romance, do ápice da batalha, a expressão do protagonista era sempre a mesma: puro horror. Os olhos castanhos brilhavam apavorados em cada folha. E as outras cores, ahhh, ela sabia. Carne, sangue, ossos, veias, couro cabeludo e bílis. Queria estar enganada, mas quando queimaram sua alma a esperança foi banida de sua consciência. Só a vingança persistia. E, levando em conta o compositor da música que ouvira há cinco anos, isso fazia todo o sentido.


“É você quem vai se arrepender.”


“Era você a velha que caminhava em nossa direção quando atendi ao desejo do garoto. Sim, agora me lembro.”


“Não sou velha”, ela repetiu. “Você chama isso de atender a um desejo? Não há compaixão em sua espécie?”


Todo o porão vibrou quando o gênio riu.


“Ele pediu para ser como um super-herói. E está feito.”, disse. “Você tem ainda seus pedidos e se te trouxer satisfação, deseje a minha morte. Não percamos tempo, pois sua cara me enche de repugnância.”


Ela deu de ombros.


“Poetas e músicos escrevem desde tempos antigos sobre a inveja que os deuses têm de nossa mortalidade. Hoje isso é um clichê. Mas não uma mentira. A morte seria uma libertação para você.”


Mais vapor.


“Mas você está certo. Já é hora do próximo desejo. Como prometi, será uma pergunta. Diga-me, com toda sinceridade, qual é seu maior medo?”


A esfera foi tomada por uma tonalidade azul opressiva e mais pedaços de sua geometria maldita caíram no chão. Então sua forma retornou ao normal. Ou quase isso, pois o vermelho já não parecia tão vivo e a esfera estava longe da perfeição.

“Continuar existindo para sempre, sem nunca mais realizar um desejo nos mundos em que habito.”


“Só isso?!”, questionou surpresa.


“Acredito que todas as coisas existam para cumprir seu propósito. Proibir meus serviços para sempre é proibir que o fogo queime. É negar o propósito da existência e a possibilidade de adquirir um sentido novo. É condenar...”


“Basta. Entendi. O próximo desejo é bem simples. Preparado? Desejo que pelos próximos dez minutos você experimente a certeza da eternidade vivendo seu maior medo.”


Por uma eternidade ele sofreu.


Por dez minutos ela esperou.


Quando o tempo passou, a forma esférica era apenas uma memória. Derretia, incapaz de se sustentar. Nem sua cor preservava, tornando-se puro cinza.


“Piedade”, pediu, “Farei qualquer coisa, sem corromper nada, basta pedir e eu farei.”


Ela riu, mas suas cordas vocais sangraram e ela cuspiu no chão.


“Fizemos isso com você, não é? É esse o motivo de suas ações. Diga-me o que aconteceu e reverterei a situação, ou peça-me para condenar aquele que fez isso. Tenho este poder.”


A mulher suspirou.


“Ele me sugeriu ouvir a mais bela música da existência. Sabe quem a compôs?”, perguntou.


“Aquele que concede seis desejos. Lúcifer. Depois de sua queda.”, ele respondeu, agora duvidando que poderia acalmar sua ira.


Ela balançou a cabeça. Os olhos de repente voltados para o passado.


“É linda. Mais bela do que tudo na Criação. Mas é também horrenda. Solitária. Carregou minha audição, minha juventude, minha alma. Não, criatura. Não quero nada de volta. Perdi minha humanidade e, sendo agora outra coisa, não consigo desejá-la. Também não permitirei que seja pelas suas mãos a danação do primeiro de sua espécie com quem me deparei. Eu mesma farei isso quando encontrá-lo. Agora, ouça com atenção meu último desejo.”, disse, apertando em cólera a revista.


“Por favor”, o gênio implorou.


“Por favor”, o almanaque replicou.


Assustada, soltou a revista no chão.


“Que truque está tentando agora?”


“Não fiz nada”, disse o gênio confuso.


“Por favor”, a revista repetiu.


Incrédulo, ele compreendeu.


“O menino aprendeu a língua do fogo. Do coração”, explicou o gênio.


“Ele ainda está vivo?!”


“Sim”, respondeu, como se isso fosse óbvio. E então se apegou à esperança: “Está vivo e sofrendo. Quando o segurou sentiu que lhe apertavam as terminações nervosas. Mesmo sozinho a menor brisa parece mil agulhas sobre os órgãos”, disse, meio orgulhoso de si. Uma brasa vermelha cintilando. “Mas posso salvá-lo, menina. Posso sim. Deixá-lo perfeito. Sem truques. Basta desejar.”


A fúria irrompeu no rosto dela.


“Eu já perdi a compaixão há muito tempo, djinn. Só há vingança em mim.”


“Por favor”, pediu o gênio amorfo, as brasas se apagando.


“Por favor”, entoou o almanaque de herói.


Furiosa, ela mordeu o lábio até o sangue escorrer pelo queixo.


E fez seu último pedido.


*

O garoto poderia ser salvo em outro momento. Na hora certa, o próximo gênio ofereceria toda barganha que pudesse. Cada segundo até lá seria uma tortura eterna. Era um preço alto, mas pagável. A salvação viria com o tempo.


O garoto poderia ser salvo em outro momento. Mas ainda assim…


O menino a seguia com insistência, mesmo depois de tê-lo mandado voltar para sua família.


“Minha mãe está bem. Aquilo a curou antes de me transformar”, ele respondia toda vez, sem mover os lábios. Como era bom escutar alguém.


“Não é uma viagem para crianças”, ela murmurava sempre. “Se algo der errado, você pode se machucar de novo. Pode ser ainda pior”.


O garoto dava de ombros.


“Não tem jeito. Não posso deixar que eles machuquem você ou outras pessoas”, ele respondia com o coração.


Um dia, enquanto acampavam, ela sussurrou:


“Sabe, acho que você nunca precisou daquele segundo desejo”


Mas o garoto já tinha dormido.








Este conto ficou em terceiro lugar no desafio literário do entrecontos, grupo B. Você pode ler outras histórias bem bacanas por lá.

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