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  • Foto do escritorLeandro Barreiros

O Médico e o Monstro

Essa análise faz parte da clássica análise literária das "Narrativas do Abismo".


“O Médico e o Monstro” foi escrito no final do século XIX por Robert Louis Stevenson. É tradicionalmente associada ao terror, embora eu não tenha identificado tantos elementos do gênero.





De fato, achei a leitura muito mais próxima de uma narrativa de investigação policial do que qualquer coisa. Mais Doyle do que Poe. Até faz sentido, vendo o nome original da história: “Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde”, ou “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”


Dentre as muitas surpresas que tive na história, o pov foi a primeira. Não seguimos a história a partir do Dr. Jekyll. Originalmente, acreditava que observaríamos a luta interna do médico enquanto ele se entregava às maiores barbaridades que a mente humana poderia conceber.


Mas não.


Seguimos a narrativa centrado no personagem Gabriel John Utterson, ou senhor Utterson, advogado e cavalheiro exemplar, amigo de longa data do Dr. Jekyll. É a partir de Utterson que acompanhamos o mistério que cerca a enigmática relação entre Jekyll e Hyde. Utterson recebeu um misterioso testamento de seu amigo Jekyll, instruindo-lhe a passar todos os seus bens ao senhor Hyde, caso o doutor morra ou desapareça.


Quando escuta a tenebrosa história de que Sr. Hyde feriu uma garotinha por prazer e saiu andando, o advogado imagina que o amigo médico está em apuros, possivelmente sendo ameaçado por figura tão obscura. Qual outro motivo teria ele para escrever tal testamento?


Aliás, a narrativa se desenvolve com foco na grande revelação final de que Dr. Jekyll e Sr. Hyde, são, alerta de spoiler, a mesma pessoa.


No fim da história, Stevenson desenvolve um interessante ensaio sobre a natureza humana, através da voz de Dr. Jekyll. Diz que essa natureza é dualista, embora admita a possibilidade de que possa ser múltipla. Em essência, sugere o autor que todos temos um lado que escondemos ou reprimimos, uma faceta que deseja coisas más, escondida por sabermos que ela não é socialmente aceitável. Uma faceta que, em certa medida, é animalesca e destrutiva.


Queria Jekyll dar liberdade a ambas facetas, sem que uma tivesse que carregar o peso da outra. O que surge dessa separação é o Sr. Hyde, que não representa apenas desejos animalescos, mas a pura maldade humana.


Que fique claro, a abordagem do autor é interessante, poética e bem redigida. Não pode ser reproduzida (por mim pelo menos) de maneira fiel, e por si só merece a leitura do livro.


Apesar de sugerir conflitos entre o ID e o superego (não com esses nomes), a obra de Stevenson foi escrita quase dez anos antes do primeiro texto relevante de Freud (segundo uma confiável pesquisa de 10 segundos no google), o que traz para essa literatura inglesa certa aura auspiciosa.



De fato, a origem de Hyde parece estar associada a necessidade que sentia o médico de esconder seus pequenos prazeres da vida cotidiana, pois nascera ele com uma certa personalidade alegre que não é esperada de um homem de sua posição; um médico, que deve cumprir seu papel social. Esperava-se seriedade de Jekyll e, por isso, ele se via obrigado a esconder seus prazeres mundanos do resto da sociedade.


Longe de ser psicanalista, mas as questões levantadas por Stevenson parecem coerentes com as teorias posteriores de Freud. Contudo, há de se falar em auspício?


A verdade é que a dualidade da natureza humana é conhecida e discutida há bastante tempo. Esteve/está presente no cristianismo, taoísmo e mesmo nas figuras mitológicas de Apolo e Dionísio, explorada de maneira racional por Nietzsche, em 1872, antes, também, das abordagens de Freud e mesmo do trabalho de Stevenson.



Sobre as indizíveis barbáries cometidas pelo Sr. Hyde, são apenas duas. Ele esbarrou em uma garotinha e, ao invés de ajuda-la a se levantar, pisou nela e foi embora. A garotinha não se machucou, mas Hyde foi extorquido por uma multidão a indenizar a família da garota pelo incômodo. A segunda maldade foi o assassinato passional de um político que andava pelas ruas de madrugada. Não se sabe exatamente do que falavam, mas Hyde perdeu a paciência e deu-lhe uma cacetada com uma bengala.

Para minha cínica mente do mundo contemporâneo, Sr. Hyde esteve longe de expressar a mais pura maldade humana.


Se recomendo o livro? Claro. Você encontra de graça na Amazon. É um clássico, é pequeno, possui uma discussão interessantíssima sobre a natureza humana e tem belíssimas construções, como essa:


“E, das névoas insubstanciais e mutantes que durante tanto tempo haviam confundido seu olhar, pulava agora o pressentimento brusco e nítido de um espírito maligno”

Fala sério, muito foda.





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